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07 junho 2016

Peregrinações de Marcolino III

07 junho 2016 4 Comentários
IR DE BELÉM PARA BENFICA ERA BOM PARA JOGAR. E O RESTO…


Depois do sobressalto do Verão de 1907 (deserção dos principais futebolistas e de mais uma dezena de associados) percebeu-se que o Clube tinha de conseguir resolver definitivamente o problema de não ter campo próprio e treinar/jogar em terrenos públicos nas Terras do Desembargador onde tinha que partilhar o espaço com a tropa dos quartéis instalados na calçada da Ajuda.

Uma feliz composição cronológica de Marcolino Bragança realizada pelo leitor deste blogue, Victor João Carocha

Marcolino e a sua ideia mágica
A solução de não acabar com o Clube inscrevendo os futebolistas da 2.ª categoria de 1906/07 como 1.ª categoria em 1907/08 foi fantástica mas não era mais que adiar o problema. A temporada não correu mal porque os futebolistas eram de classe acima da média para uma segunda categoria. No campeonato regional o “Glorioso” (assim conhecido desde a vitória sobre os ingleses do Carcavellos Club em 10 de Fevereiro de 1907) classificou-se atrás do Carcavellos Club (Bicampeão) e do Sporting CP (que contava com oito “Gloriosos” de 1906/07)! Sporting CP à nossa frente!? Assim também eu, é caso para dizer. Ou seja, a segunda categoria mostrava que Marcolino Bragança tinha razão. Em 1906/07 era quase tão boa como a primeira! E provou-o em 1907/08.

Milita numa sentida homenagem, no cemitério da Ajuda, junto ao jazigo da família que foi um dos principais suportes do início do Clube, os farmacêuticos Franco com destaque para o Conde do Restelo. O pai Marcolino sentiu na pele a benemerência de alguns deles!

A categoria dos “espertos”
Foi Cesina Bermudes, filha de Félix Bermudes, que me contou em finais dos anos 90 que o pai dizia que a primeira categoria em 1906/07 podia ser conhecida como “dos bons”, mas a segunda era a dos “espertos”. João Persónio (taquígrafo nas Cortes de São Bento), Félix Bermudes (escritor dramaturgo), Cosme Damião (secretário da Casa Palmela, uma espécie de CEO daqueles tempos de uma das famílias nobres mais poderosas em Portugal), José Netto e Francisco Santos (escultores), José Rosa Rodrigues (armador), Manuel Gourlade (fluente em francês e inglês, além de contabilista), Leopoldo Mocho (curso comercial) e Marcolino Bragança (estudante liceal e “futuro inventor de laranjas adocicadas”). Nove em onze. Entre 1904/05 e 1906/07! E haverá outros que ainda não se sabe a profissão ou aptidão!

Em 1950, Daniel Santos Brito escrevia acerca das boleias, embora para comentar a ida para um jogo frente aos ingleses do New Cruzaders FC em 1912/13

Benfica
A ideia da junção em 1908 sem que os dois clubes (Sport Benfica e Sport Lisboa) perdessem a sua individualidade foi genial. Uma forma do Sport Lisboa “mandar” no futebol – na sua “gestão” – passando a dispor de infraestruturas (campo e Sede) e superestrutura (dirigentes) que os libertasse de preocupações desnecessárias para quem o único interesse que tinha do desporto era jogar cada vez melhor futebol.



E os de Belém?
Para quem vivia por Lisboa mais central conseguia chegar a Benfica com alguma rapidez (velocidade reduzida hoje se comparada com 1908!) mas e o núcleo maior de futebolistas (cerca de 40 para as três categorias) que vivia em Belém? Como chegar de Belém a Benfica para jogar e a seguir regressar a Belém depois do jogo?

Monsanto como era no tempo em que a maior parte dos futebolistas do SLB habitavam em Belém. Depois tudo se foi alterando. Com futebolistas de outras origens. E até a melhoria das acessibilidades do centro da cidade a Benfica

Calcorrear Monsanto
Benfica ficava (e fica) a norte de Belém mas tem uma "ilha" a separar os dois locais. Actualmente é um Parque Florestal, mas em 1908 (até 1945) era um descampado com grandes terrenos semeados com cereal. Até ao Palácio da Ajuda havia habitações depois só uns quantos quilómetros mais à frente no Calhariz de Benfica. A sorte é que por vezes o percurso não era pedestre. O carrão do Conde do Restelo dava boleia a uma catrefada de “Gloriosos” que poupavam nas solas das chuteiras. Iam revezando-se de jogo para jogo. Para os “pedestres” era o aquecimento para o jogo com o chafariz das Garridas como oásis, já com o campo na quinta da Feiteira à vista. Conta a filha Milita, que mesmo em Angola, Marcolino andava que até cansava de ver. Pudera. Quem faz Monsanto a pé, ida-e-volta, várias vezes por ano, em adolescente, fica “vacinado” para o resto da vida! Eu desde que sei isto, quando faço o mesmo percurso em alcatrão, até de carro fico cansado!

Boa água abundava em Monsanto. Aqui uma bica num muro da enorme estrada das Garridas que começava (ou acabava) onde está na actualidade o terreno de jogos do Casa Pia AC: o popular "Pina Manique"

Aquecimento e desentorpecimento
Belém, calçada da Ajuda, estrada dos Marcos, estrada do Penedo, estrada de Monsanto, estrada do Outeiro e estrada das Garridas até juntar-se à rua Direita de Benfica (actual estrada de Benfica) no chafariz das Garridas. Devem ser bem meia dúzia de quilómetros a subir e depois a descer e ao contrário à vinda. Equipados com as flanelas vermelhas deviam de parecer papoilas rubras ao vento em campos esverdeados-amarelados por caminhos de terra-batida. De carro seria mais rápido sempre na expectativa de um encontro imediato com algum animal de quatro patas a atravessar-se no caminho do FIAT do Conde do Restelo. Para empatar! Um grupo que só pensava em vencer. E vencer. E vencer. Insaciáveis!

Milita descansa num banco de pedra junto ao chafariz que fazia as delícias de Marcolino e dos futebolistas de Belém (onde treinavam) que atravessavam Monsanto para jogar na Feiteira, em Benfica. Será que Marcolino Bragança se sentou nesse mesmo banco? Quantas vezes? 

Marcolino Bragança. À boleia ou a pé ninguém o conseguiu fazer esquecer a sua juventude! O que o “Glorioso” provoca em nós!

(continua)

Alberto Miguéns

NOTA FINAL: O percurso indicado ao pormenor baseia-se no que seria o caminho "mais curto" baseado num mapa da época - Levantamento Topográfico da Cidade de Lisboa (1904-1911) de Júlio Silva Pinto. O que não quer dizer que fosse esse e o mesmo para todos até porque de Belém a Monsanto havia mais calçadas a convergirem nessa colina da cidade. E nem sempre em áreas agrícolas o caminho mais curto é o melhor. Do que eles não teriam falta durante o percurso era de fontes com água potável e da boa. As características geomorfológicas de Monsanto - manto basáltico sobre calcário - em tempo de cultivo dos campos favorecem o aparecimento de níveis freáticos pontuais à superfície.



4 comentários
  1. Que detalhes deliciosos. Que tarde magnífica que a filha e a neta de Marcolino terão tido.

    Desde o FIAT (bela carripana, até eu gostava de a conduzir), até à muar (coitada), até à equipa dos espertos, até essas magníficas caminhadas que muito esforço e dedicação deveriam exigir.

    Fica claro o amor à camisola. Fazer esses quilometros a pé era obra. Grandes pioneiros!

    Grande texto, grandes reconstrução. Fabulosos detalhes. Obrigado!

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  2. Tenho seguido esta viajem ao passado com muito interesse,quem me dera ter uma maquina do tempo para ir ver esses jogos e falar com todos esses herois.Mas tenho uma pergunta a fazer,eu sou de Campo De Ourique e cresci mesmo perto dos Alunos de Apolo,tambem perto das Amoreiras,a minha pergunta e onde ficava o Estadio das Amoreiras?Era perto de onde sao as Amoreiras?Eu sei que tivemos de abandonar esse Estadio devido a Avenida Duarte Pacheco,mas mais ou menos onde ficava o Estadio?Eu tenho um grande orgulho tambem de a minha familia da parte da minha mae ser de Belem e apesar do meu avo ser Belenenses acho que estava no meu destino ser do Glorioso.

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    1. Caro

      Ficava (a maior parte) onde é o Liceu Francês. Já mostrei imagens do estádio e da avenida (ainda existe) que o inutilizou em 17 de Setembro de 2015. Pode consultar neste blogue em:

      http://em-defesa-do-benfica.blogspot.com/2015/09/lagrimas-nos-olhos_17.html

      TriGloriosíssimas Saudações

      Alberto Miguéns

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  3. Só nos tornamos ainda mais fortes, se soubermos honrar o nosso passado e de quem semeou o Glorioso!!!
    Ao ler estes saborosos nacos de prosa com que o Miguéns faz o favor de nos obsequiar, até parece que estou numa biblioteca...GLORIOSA !!!

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